
A maior parte das pessoas interessa-se pela aplicação da justiça, mas acha que não é
preciso ter nenhuma teoria especial sobre o assunto. Afinal de contas há leis e quem
as aplique; quem zele pela sua aplicação; e sítios especiais onde aqueles a quem se
aplicam podem ficar, às vezes durante muitos anos. Havendo quem trate do caso, não
parece útil que mais alguém tenha de ter ideias sobre o problema. Os juristas e os civis sentem impaciência sempre que se fala de ideias sobre a justiça.
Alguns de nós não-juristas interessam-se todavia por essas ideias; interessam-se por
uma teoria da justiça. Se para melhorar a nossa reputação se pudesse sugerir leituras
a juristas e a civis, não seria de lhes recomendar nem direito, nem filosofia nem
romances (e não decerto ciências sociais), mas uma passagem do livro do Êxodo e uma
passagem do Evangelho de São Mateus. São duas passagens muito conhecidas. O
autor do Êxodo declara: “olho por olho, dente por dente” (Ex. 21:22); e o Santo
descreve Jesus a recomendar “não julgueis para que não sejais julgados” (Mt 7:1).
É natural imaginar que estas passagens se opõem, ou que pelo menos não têm nada a
ver uma com a outra. Para clarificar a sua relação precisamos de uma boa ideia de
justiça; e é para isso que serve uma teoria da justiça. Uma teoria da justiça tem de
explicar ao mesmo tempo o papel da retribuição (“olho por olho”) e da reticência
(“não julgueis”), na sua relação com a justiça; e também porque nenhuma destas
dimensões pode completamente ser eliminada.
Apesar de alguns encontrarem conforto nas injunções do autor do Êxodo, a ideia de
São Mateus parece mais calhada às inclinações penais genéricas. É usada para explicar
que não é preciso ter opiniões sobre aquilo que os outros fazem, desde que haja quem
lhes faça aquilo sobre que não conseguimos ter opinião; e também como ameaça
difusa sobre quem tem opiniões sobre as acções alheias, embora não se perceba muito
bem por que meios, ou exactamente por que razão. Não é de excluir que os que
condenam o facto de julgarmos os outros temam um pouco a possibilidade de virem a
ser julgados.
Muitos dos que concordam com as ideias que atribuem a São Mateus deploram a
energia do autor do livro do Êxodo, a quem acusam (caso seja esse ainda o verbo) de
defender uma teoria penal baseada na vingança. A diferença entre as duas passagens
é explicada por eles através de uma ideia peculiar sobre a relação entre o livro do
Êxodo e o primeiro Evangelho. Aquele seria uma versão obsoleta deste: como uma
ponte de pedra, ou um relógio de bolso. São Mateus teria explicado porque não
precisamos já do livro do Êxodo. No caso da justiça aquela ideia peculiar é um erro.
De facto, num certo sentido não existe progresso na justiça, nem descobertas na
história daquilo que é justo: o que é justo tem decerto a ver com o que fazemos, mas é
independente do que fazemos em cada momento. A justiça no tempo do Êxodo não é
uma versão obsoleta da justiça no nosso tempo.
O autor de “Olho por olho” tinha argumentado que qualquer olho substitui adequadamente outro olho qualquer, pelo menos para efeitos penais. O Jesus de São
Mateus citou essa recomendação verbatim e exprimiu reservas a seu respeito. Irá
porém perguntar também, mas menos famosamente, “por que reparas tu no argueiro
que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho?” (Mt 7:3). A
pergunta sugere que os nossos olhos, agora para efeitos epistémicos, se equivalem:
terão os seus argueiros, e até as suas traves. Dela segue-se a possibilidade de o olho
do juiz poder não ser menos obstruído que o do criminoso: quem recomenda olho por
olho pode não estar a ver bem as coisas.
Ao autor do livro do Êxodo atribui-se todavia a invenção da ideia de retribuição
proporcional; e esta ideia é com razão celebrada como um avanço na história das
ideias. No entanto o mesmo autor também defende que a proporcionalidade se tem
de basear na reticência: “olho por olho” quer no fundo dizer apenas um olho, e nunca
mais que um olho. Apesar de argumentar quase sempre a favor das vantagens de
uma justiça não-retributiva, São Mateus, logo a seguir à passagem que nos ocupa, irá
defender uma ideia que faz lembrar a do autor do Êxodo: “com o juízo com que
julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a
vós.” Está provavelmente a acrescentar à lista do Êxodo (“Olho por olho, dente por
dente, mão por mão, pé por pé, / Queimadura por queimadura, ferida por ferida,
golpe por golpe”) a expressão “juízo por juízo.”
Com efeito, para São Mateus o juízo não parece ser o que realmente importa a uma
teoria da justiça. A justiça não consiste na aplicação da justiça, mas antes na reticência
em relação à ideia de aplicação. A sua noção de proporcionalidade consiste nisso:
como todos os juízos emitidos por agentes de justiça ou civis se equivalem, a justiça
não pode consistir na mera emissão de juízos ou na mera aplicação desses juízos.
Tenta assim acomodar um elemento de retribuição com um elemento de reticência; vê
na justiça ao mesmo tempo um elemento de simetria proporcional e um elemento de
reserva; recomenda o uso moderado de um critério de proporcionalidade: nem juízos
a mais, nem olhos a menos.
Sobre a ideia de uso moderado existem porém grandes confusões. É costume dizer
que um sistema penal, ou a aplicação de uma sentença, devem ser avaliados pelas
suas consequências; e por isso imaginar que nos devemos restringir sempre que as
consequências das nossas acções pareçam garantidamente indesejáveis. Se um
determinado sistema penal tem como consequência o aumento da criminalidade ou
da reincidência, deverá ser alterado; e se a sua consequência é a sua diminuição,
deverá ser encorajado. A ideia parece prática: implica por exemplo que para evitar as
consequências indesejáveis de todas as actividades criminosas fossemos todos
prudencialmente postos na prisão; e que para evitar as consequências indesejáveis da
prisão ninguém fosse preso. Nenhum critério decente de uso moderado pode ser
extraído de um raciocínio sobre consequências.
A consideração das consequências de um sistema penal não tem nada a ver com
justiça; e não é muito importante para uma teoria da justiça. Se se descobrisse que o
chocolate aumenta a criminalidade, ou que o café a diminui, tal não seria uma
descoberta nem uma contribuição para o estudo dos méritos do chocolate ou do café.
Para a maior parte das pessoas que conhecemos, o problema da justiça é um problema
prático ou humanitário, um problema de sistema penal ou uma colecção de casos de
polícia; poucas se interessam sobre a actividade que consiste em aplicar a justiça, isto
é, a actividade que consiste em distribuir sentenças por quem cometeu crimes;
poucas se interessam por uma teoria da justiça. Esta diferença é parecida com a
diferença entre discutir as vantagens de certas variedades de café e considerar o facto
de a maior parte das pessoas neste mundo beberem café. O Jesus de São Mateus
insistiu em que o nosso mundo não é o único mundo que existe, e que os nossos
hábitos são simplesmente os hábitos que temos nele; e que muitos podem não ser
bons. Emitir juízos sobre o que é justo será porventura um mau hábito característico
do nosso mundo.
Uma teoria da justiça requer que se considere a qualidade particular de castigar que
consiste em não castigar sempre, ou sempre que a maioria acha necessário e legítimo.
É a qualidade característica de quem acha que a retribuição não deve excluir a
reticência; e que a reticência não deve substituir a falta de retribuição. Aos que
deploram o facto de se prenderem pessoas parece algumas vezes necessário lembrar a
questão da retribuição; e aos que deploram o facto de nunca se prender um número
suficiente de pessoas parece sempre necessário lembrar a reticência. A justiça
consiste no equilíbrio entre retribuição e reticência. No entanto, como nenhuma
consideração adequada desse equilíbrio pode ser calculada a partir das consequências
da aplicação de medidas particulares de retribuição e reticência, é de esperar que haja
sempre tensões entre quem aplica a justiça e quem fala dela.
Professor Universitário e Director da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa